sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A religião Botequim (por Aydano André Motta)


Lá vai mais um de nossos conpanheiros botequeiros...

Gente, eu queria tanto escrever assim...


"Vivemos uma era de bissextos socos na mesa. Abdicou-se da indignação, aposentaram-se as fúrias, fechou-se a tampa das paixões retóricas. O máximo que o protocolo permite é um choramingo contra o governo, um lamento pela violência, uma queixa contra o vizinho barulhento. Tudo no monocórdio tom do "onde nós vamos parar?", ó tédio. São tempos órfãos de veemência, blasé, apáticos, desencantados e individualistas. Ninguém fala em ir para a rua, pintar a cara anda demodê, defender crenças com flama semeia enfado na vizinhança. Sai no máximo um "mas que cara chato". Desapaixonamo-nos, eis a verdade.Um assunto, somente um único e soberano tema, provoca argumentações ensandecidas. A ele ninguém resiste, não há esquivas nem muros. O botequim de fé. Para ver uma roda pegar fogo em verdades gritadas ao mundo, basta falar mal - ou bem - deste ou daquele boteco, criticar o chope do vizinho, questionar a atitude do garçom-celebridade, atestar a (falta de) asseio no banheiro, reclamar da excessiva (ou nenhuma popularidade) ou, crime hediondo, fazer reparos à localização do estabelecimento. Como se diz hoje em dia, a chapa esquenta.Por uma dessas idiossincrasias da civilização, os botequins vão tomando o lugar que já foram, um dia distante no passado, de partidos políticos e clubes de futebol. Quem prefere o Bracarense, torce o nariz para a boêmia feérica do Jobi; os defensores do Adonis pregam que os botequins do Leblon têm muita imprensa; a turma do Bar Brasil reivindica a paternidade do beber na Lapa, oferecendo inclusive material para o exame de DNA; os sócios-atletas do Cervantes deploram o cheiro de gordura que farejam no Lamas... Não para, não para, não para não, seja birosca, portinha, quiosque, lanchonete ou bunda-de-fora. Religião perde.A tribo visceral só uniformiza o discurso num solitário ponto: o ódio às franquias. Quem vai a bar que virou rede não tem jeito, não sabe nada ou é turista. Por mais que devassas, belmontes, informais e espelluncas caprichem nos petiscos, gelem o chope a níveis siberianos, transformem garçons em máquinas do bem servir, não tem perdão. Desde que o Cervantes, ó heresia, abriu filial no Via Parque (ainda existe?), franquia não pode. O mundo é assim injusto, e estamos conversados.Noite dessas, no mexicano da Cobal, ouviu-se um soco na mesa em defesa do Chico & Alaíde, o boteco-pocket recém-aberto no Leblon. Um fã apaixonado garantia que só no Brasil - só no Brasil! - um garçom e uma cozinheira, somente com o talento, conseguirem abrir seu próprio negócio, livrando-se do jugo patronal. A defesa do empreendedorismo movido a caldeiretas, garotos e salgadinhos quase o leva às lágrimas. Fé, amigos, é assim!Vida de boteco tem dessas coisas. Bolinhos e beliscos, empadas e besteiras, azeitonas e salaminhos garantem a jornada de delícias que justifica até o superfaturamento dos chopes. Vem de longe, da belle époque carioca, quando escritores, homens de negócios, políticos e poderosos em geral avistavam-se nos cafés das pequenas ruas do Centro pré-Pereira Passos. Meio século depois, foi da varanda de um, o Veloso, que Tom e Vinícius avistaram a menina cheia de graça e seu doce balanço, caminho do mar. Hoje, vivem lotados, ótimos negócios para seus donos, na obediência a uma lógica que privilegia habitués, mas está sempre aberta a novos convivas. Basta não ser sovina na gorjeta - nem na conversa.Assim caminha a humanidade pinguça."

(Postado por Seu Popô)

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